quinta-feira, 5 de maio de 2016

m e n i n a s exemplares

1857 - As meninas exemplares

Les Petites Filles modèles

Antes de adentrarmos na obra, é fundamental contextualizá-la para realizarmos um recorte coerente com a construção da imagem feminina nela explicitada.
Trata-se de uma obra da segunda metade do século XIX, 1856 exatamente, época em que, embora começasse a emergir uma preocupação maior com a educação das crianças, não havia ainda um olhar para características do mundo infantil, uma educação pautada por uma psicologia infantil. Essas características ainda não eram respeitadas, visto que as crianças eram submetidas à ideologia do adulto. A infância como fase de preparação para uma vida adulta muito bem delimitada, sem espaço para subjetividades. Principalmente em se tratando de mulheres, essa preparação era ainda mais rígida e restrita.
O título da obra já traz a valorização de meninas muito bem moldadas ao sistema e ideologia da época, contudo a protagonista é uma menina colocada como contraexemplo sob a perspectiva da época. Resumidamente, em “As Meninas Exemplares” o leitor é apresentado às irmãs Camila e Madalena, crianças que nunca brigam, que convivem perfeitamente bem. Elas vivem com a mãe viúva, Sra. Fleurville, e com a Sra. Rosbourg e sua filha Margarida, estas últimas acolhidas após terem sido resgatadas de um acidente de carruagem com ajuda das duas irmãs, incidente narrado logo nos primeiros capítulos. Madalena e Camila, as meninas exemplares da história, mesmo sendo muito jovens (7 e 8 anos, respectivamente) já têm grande parcela de responsabilidade na educação de Margarida, como por exemplo visto no capítulo IV “Reunidas Para Sempre”:
— Minhas filhas, disse-lhe Mme. De Fleurville, se vocês querem deixar-me mais feliz ainda do que tenho sido até aqui, é preciso que redobrem em aplicação no estudo, em obediência às minhas ordens, e em amizade entre si. Vocês serão as encarregadas na educação de Margarida, debaixo da orientação da mãe dela e da minha. Para que ela seja boa e obediente, é preciso que vocês lhe dêem bom exemplo.

 Margarida passa a se esforçar para se tornar tão virtuosa e obediente quanto as suas novas amigas. Ou seja, Margarida é colocada como um exemplo bem sucedido de educação. Ela corresponde, ao longo da história, muito bem às expectativas das figuras femininas exemplares.
Sofia, a menina contraexemplo, protagonista de todas as peripécias, surge no capítulo VII chamado “Camila é Castigada”, desestabilizando a normalidade. Ela é uma órfã que mora com sua madrasta, Sra. Fichini, que a maltrata e espanca. A madrasta viaja à Itália e deixa Sofia sob os cuidados das Sras. Fleurville e Rosbourg. A menina inicia um percurso de aperfeiçoamento moral, no qual ela aprende a ser mais contida e obediente.
Nesse capítulo entendemos a pressão a que as meninas são submetidas. Elas precisam ser dotadas de características idealizadas, com isso não se permitem errar e agir espontaneamente e irracionalmente como uma criança. Em dado momento, Camila reage instintivamente ao dar um tapa em Sofia por ter empurrado com força Margarida, que tentou frear sua vontade de apreciar as flores estragando o pé de morango. Mme. Fleurville estranha a atitude de Camila e dá uma dimensão muito maior para o ocorrido, tratando esse pequeno desvio comportamental como inadmissível. Diante da Mme. Fichini Camila omite o que Sofia fez e assume a culpa sozinha para que a menina não apanhe ainda mais:
— Obrigada, Camila, por você não ter dito nada do que eu fiz. Se a minha madrasta soubesse, iria me bater com chicote até tirar sangue.
Violência contra a protagonista perpassa toda obra. Tatiana Argeiro em sua tese “Violência e Práxis na Literatura Infantil e Juvenil: Uma Análise Comparativista” aborda detalhadamente a prática da violência na obra da Condessa e contextualiza-a:
“É importante lembrar que já no período, de acordo com os relatos de Ariés, o hábito de bater nas crianças já era tido como violento, e as surras eram mais aceitas nas comunidades rurais. Desta forma, podemos ler as severas punições de Sofia como atos violentos, uma vez que a personagem faz parte de uma classe aristocrática. Além disso, pensando o elemento espacial dos livros, notamos que os enredos se passam no campo, mesmo sendo a família da cidade. Ao relacionarmos o motivo principal dos livros, especialmente em Sofia, a desastrada, que é moldar e educar Sofia, sua passagem pelo campo, longe da chamada vida em sociedade, simboliza um treinamento para um futuro na cidade. Assim, após suas aventuras e consequentes castigos, ela poderá ser uma jovem adaptada e aceita.” (pg. 40)
Todas as outras personagens percebem o exagero dos castigos impostos pela Mme. Fichini e não corroboram seus meios de educar Sofia. Conseguimos captar a crítica da autora ao modelo de educação pela violência física. Sob os cuidados da Sra. De Fleurville, Sofia inicia uma nova experiência educacional na qual deve obediência absoluta, onde aprende a repetir um modelo. Em seus castigos ela aprende a refletir sobre seus erros e a se arrepender de seus atos. A mensagem pedagógica que se tem a cada capítulo é a da necessidade de severidade sem apelar para a violência física. Essas narrativas de violência seguem uma dinâmica dessa prática nos contos de fada, tal influência é possível de ser observada na obra:
“Enquanto esperava pela criada, Mme. de Fleurville, senta-se na cadeira e olha para Sofia, que tremendo diante da calma dela, daria tudo na vida para não ter rasgado o papel e quebrado a caneta.
Assim que a criada chegou, Mme. de Fleurville disse:
--- Você vai escrever dez vezes a reza que eu já tinha mandado você escrever. Você sòmente irá comer hoje sopa, pão e água. Vai pagar com o seu dinheiro tudo o que você estragou, não verá suas amigas mais de dia, irá passa-los todos aqui, com exceção de duas horas em que sairá para tomar um pouco de ar com a criada. Só sairá desta prisão quando estiver arrependida, mas realmente arrependida. Você deve pedir perdão a Deus da dureza do seu coração em relação aos pobres, pela sua gula e egoísmo, pelo que fêz a Margarida, e ainda pela raiva que a fêz estragar tudo o que estava aqui. Eu espera que você já estivesse calma, e que pudesse estar realmente arrependida. Mas, pelo que vejo, deve esperar até amanhã. Até logo e reze para não morrer sem ter tido o devido arrependimento.” (Capítulo, XVI – O Quarto da Punição, p. 84-85.)

Trazendo para a perspectiva atual, compreendemos a “rebeldia” e a falta de condescendência de Sofia como uma construção humanizada da personagem, que desafia a norma da vida adulta. Ela possui personalidade forte, que é a todo momento bloqueada e impedida. Isso também diz muito sobre o processo de se tornar mulher dentro do sistema da época. Ou seja, existe uma dimensão de gênero nessa preparação para vida adulta. 
Trata-se da primeira obra autoral da Condessa Ségur e foi inspirada nas memórias que ela possuía das aventuras de seus filhos e netos. Geralmente seus livros possuem narrativas curtas, retiradas da observação do cotidiano e das brincadeiras infantis, e de como elas podem servir de assunto para ensinar a moral, os bons costumes, educar e formar um caráter exemplar.
Explorando as ações do humano em sua interação social, em 1857 a Condessa publica a obra “As meninas exemplares”. Este livro retrata o comportamento de duas meninas, Camila e Madalena, que são dotadas de um ótimo comportamento, e que devem servi de exemplo não só para as crianças leitoras ou ouvintes da época, assim como para as demais crianças que dão continuada a sua obra como personagens.


Através dessas narrativas, a Condessa quer despertar nas meninas um instinto maternal, caridoso e recatado. As histórias possuem um tom engraçado, pois foge do mundo lúdico dos contos de fada, onde o imaginário é construído por metamorfoses, mágicas e relações como o maravilhoso.  Na Condessa a aproximação do mundo imaginário infantil é feita pela criatividade das brincadeiras e ações das próprias crianças, o que torna mais verossímil as lições.

Nenhum comentário:

Postar um comentário