Les Petites Filles modèles
Antes de adentrarmos na obra, é fundamental
contextualizá-la para realizarmos um recorte coerente com a construção da
imagem feminina nela explicitada.
Trata-se de uma obra da segunda metade do século XIX,
1856 exatamente, época em que, embora começasse a emergir uma preocupação maior
com a educação das crianças, não havia ainda um olhar para características do
mundo infantil, uma educação pautada por uma psicologia infantil. Essas
características ainda não eram respeitadas, visto que as crianças eram submetidas
à ideologia do adulto. A infância como fase de preparação para uma vida adulta
muito bem delimitada, sem espaço para subjetividades. Principalmente em se
tratando de mulheres, essa preparação era ainda mais rígida e restrita.
O título da obra já traz a valorização de meninas
muito bem moldadas ao sistema e ideologia da época, contudo a protagonista é
uma menina colocada como contraexemplo sob a perspectiva da época.
Resumidamente, em “As Meninas Exemplares” o leitor é apresentado às irmãs
Camila e Madalena, crianças que nunca brigam, que convivem perfeitamente bem.
Elas vivem com a mãe viúva, Sra. Fleurville, e com a Sra. Rosbourg e sua filha
Margarida, estas últimas acolhidas após terem sido resgatadas de um acidente de
carruagem com ajuda das duas irmãs, incidente narrado logo nos primeiros
capítulos. Madalena e Camila, as meninas exemplares da história, mesmo sendo
muito jovens (7 e 8 anos, respectivamente) já têm grande parcela de
responsabilidade na educação de Margarida, como por exemplo visto no capítulo
IV “Reunidas Para Sempre”:
— Minhas filhas,
disse-lhe Mme. De Fleurville, se vocês querem deixar-me mais feliz ainda do que
tenho sido até aqui, é preciso que redobrem em aplicação no estudo, em
obediência às minhas ordens, e em amizade entre si. Vocês serão as encarregadas
na educação de Margarida, debaixo da orientação da mãe dela e da minha. Para
que ela seja boa e obediente, é preciso que vocês lhe dêem bom exemplo.
Margarida passa a se esforçar para se tornar tão
virtuosa e obediente quanto as suas novas amigas. Ou seja, Margarida é colocada
como um exemplo bem sucedido de educação. Ela corresponde, ao longo da
história, muito bem às expectativas das figuras femininas exemplares.
Sofia, a menina contraexemplo, protagonista de todas
as peripécias, surge no capítulo VII chamado “Camila é Castigada”,
desestabilizando a normalidade. Ela é uma órfã que mora com sua madrasta, Sra.
Fichini, que a maltrata e espanca. A madrasta viaja à Itália e deixa Sofia sob
os cuidados das Sras. Fleurville e Rosbourg. A menina inicia um percurso de
aperfeiçoamento moral, no qual ela aprende a ser mais contida e obediente.
Nesse capítulo entendemos a pressão a que as meninas
são submetidas. Elas precisam ser dotadas de características idealizadas, com
isso não se permitem errar e agir espontaneamente e irracionalmente como uma
criança. Em dado momento, Camila reage instintivamente ao dar um tapa em Sofia
por ter empurrado com força Margarida, que tentou frear sua vontade de apreciar
as flores estragando o pé de morango. Mme. Fleurville estranha a atitude de
Camila e dá uma dimensão muito maior para o ocorrido, tratando esse pequeno
desvio comportamental como inadmissível. Diante da Mme. Fichini Camila omite o
que Sofia fez e assume a culpa sozinha para que a menina não apanhe ainda mais:
— Obrigada, Camila, por
você não ter dito nada do que eu fiz. Se a minha madrasta soubesse, iria me
bater com chicote até tirar sangue.
Violência contra a protagonista perpassa toda obra.
Tatiana Argeiro em sua tese “Violência e Práxis na Literatura Infantil e
Juvenil: Uma Análise Comparativista” aborda detalhadamente a prática da
violência na obra da Condessa e contextualiza-a:
“É importante lembrar que
já no período, de acordo com os relatos de Ariés, o hábito de bater nas
crianças já era tido como violento, e as surras eram mais aceitas nas
comunidades rurais. Desta forma, podemos ler as severas punições de Sofia como
atos violentos, uma vez que a personagem faz parte de uma classe aristocrática.
Além disso, pensando o elemento espacial dos livros, notamos que os enredos se
passam no campo, mesmo sendo a família da cidade. Ao relacionarmos o motivo
principal dos livros, especialmente em Sofia, a desastrada, que é moldar e
educar Sofia, sua passagem pelo campo, longe da chamada vida em sociedade,
simboliza um treinamento para um futuro na cidade. Assim, após suas aventuras e
consequentes castigos, ela poderá ser uma jovem adaptada e aceita.” (pg. 40)
Todas as outras personagens percebem o exagero dos
castigos impostos pela Mme. Fichini e não corroboram seus meios de educar
Sofia. Conseguimos captar a crítica da autora ao modelo de educação pela
violência física. Sob os cuidados da Sra. De Fleurville, Sofia inicia uma nova
experiência educacional na qual deve obediência absoluta, onde aprende a
repetir um modelo. Em seus castigos ela aprende a refletir sobre seus erros e a
se arrepender de seus atos. A mensagem pedagógica que se tem a cada capítulo é
a da necessidade de severidade sem apelar para a violência física. Essas
narrativas de violência seguem uma dinâmica dessa prática nos contos de fada,
tal influência é possível de ser observada na obra:
“Enquanto esperava pela
criada, Mme. de Fleurville, senta-se na cadeira e olha para Sofia, que tremendo
diante da calma dela, daria tudo na vida para não ter rasgado o papel e
quebrado a caneta.
Assim que a criada
chegou, Mme. de Fleurville disse:
--- Você vai escrever dez
vezes a reza que eu já tinha mandado você escrever. Você sòmente irá comer hoje
sopa, pão e água. Vai pagar com o seu dinheiro tudo o que você estragou, não
verá suas amigas mais de dia, irá passa-los todos aqui, com exceção de duas
horas em que sairá para tomar um pouco de ar com a criada. Só sairá desta
prisão quando estiver arrependida, mas realmente arrependida. Você deve pedir
perdão a Deus da dureza do seu coração em relação aos pobres, pela sua gula e
egoísmo, pelo que fêz a Margarida, e ainda pela raiva que a fêz estragar tudo o
que estava aqui. Eu espera que você já estivesse calma, e que pudesse estar
realmente arrependida. Mas, pelo que vejo, deve esperar até amanhã. Até logo e
reze para não morrer sem ter tido o devido arrependimento.” (Capítulo, XVI – O
Quarto da Punição, p. 84-85.)
Trazendo para a perspectiva atual, compreendemos a
“rebeldia” e a falta de condescendência de Sofia como uma construção humanizada
da personagem, que desafia a norma da vida adulta. Ela possui personalidade
forte, que é a todo momento bloqueada e impedida. Isso também diz muito sobre o
processo de se tornar mulher dentro do sistema da época. Ou seja, existe uma
dimensão de gênero nessa preparação para vida adulta.
Trata-se da primeira obra autoral da Condessa Ségur e foi
inspirada nas memórias que ela possuía das aventuras de seus filhos e netos.
Geralmente seus livros possuem narrativas curtas, retiradas da observação do
cotidiano e das brincadeiras infantis, e de como elas podem servir de assunto
para ensinar a moral, os bons costumes, educar e formar um caráter exemplar.
Explorando as ações do humano em sua interação social, em
1857 a Condessa publica a obra “As meninas exemplares”. Este livro retrata o
comportamento de duas meninas, Camila e Madalena, que são dotadas de um ótimo
comportamento, e que devem servi de exemplo não só para as crianças leitoras ou
ouvintes da época, assim como para as demais crianças que dão continuada a sua
obra como personagens.
Através dessas narrativas, a Condessa quer despertar nas
meninas um instinto maternal, caridoso e recatado. As histórias possuem um tom
engraçado, pois foge do mundo lúdico dos contos de fada, onde o imaginário é
construído por metamorfoses, mágicas e relações como o maravilhoso. Na
Condessa a aproximação do mundo imaginário infantil é feita pela criatividade
das brincadeiras e ações das próprias crianças, o que torna mais verossímil as
lições.
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